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Daquilo que os médicos quase não falam: transe e êxtase na cena de parto. Experiências e percepções dissidentes de saúde e de bem-estar na contemporaneidade

What doctors hardly talk about: trance and ecstasy at the scene of childbirth. Dissident experiences and perceptions of health and welfare in contemporary times

Resumos

Para os grupos de mulheres adeptas de outros modos de parir que não a cesárea e o modelo tecnocrático-hospitalar, a dor do trabalho de parto parece operar em outro registro, que não o da desordem e de algo a ser evitado. Dispostas a "sentir o parto", parecem ir ao encontro das contrações, das emoções e do descontrole, dando passagem para percepções de saúde que seriam atravessadas pela sexualidade e pela espiritualidade, por noções de êxtase e de transe. Diante disso, pretende-se explorar se e de que maneiras tais experiências e percepções têm desalojado a prática médica da "biopolítica", tematizando, para tanto, suas impressões e atitudes à luz da lógica das intensidades e dos afetos, de novos modos de subjetivação e da possibilidade de outras moralidades, que não mais a da histeria e a da fragilidade dos corpos das mulheres.

Parturição; Representações; Feminilidade e corporalidade


For the groups of women devotees of ways of giving birth other than cesarean section and the technocratic hospital model, the pain of labor seems to operate at another register, quite different from disorder and something to be avoided. Fully prepared to "experience the birth," they seem to eagerly embrace the contractions, the emotions and lack of control, giving expression to perceptions of health that appear to be permeated by sexuality and spirituality and by elements of ecstasy and trance. Therefore, the scope of this paper is to explore whether and in what ways these experiences and perceptions have dislodged the medical practice of "biopolitics," thereby examining their impressions and attitudes in light of the logic of the intense emotions and affection, namely of new modes of subjectivity and possibility of other moralities, other than hysteria and the fragility of women's bodies.

Parturition; Representations; Femininity and corporality


ARTIGO ARTICLE

Daquilo que os médicos quase não falam: transe e êxtase na cena de parto. Experiências e percepções dissidentes de saúde e de bem-estar na contemporaneidade

What doctors hardly talk about: trance and ecstasy at the scene of childbirth. Dissident experiences and perceptions of health and welfare in contemporary times

Rosamaria Carneiro

Departamento de Saúde Coletiva, FCE/UnB. QNN 14, Ceilândia. 72.222-140 Brasília DF. rosagiatti@yahoo.com.br

RESUMO

Para os grupos de mulheres adeptas de outros modos de parir que não a cesárea e o modelo tecnocrático-hospitalar, a dor do trabalho de parto parece operar em outro registro, que não o da desordem e de algo a ser evitado. Dispostas a "sentir o parto", parecem ir ao encontro das contrações, das emoções e do descontrole, dando passagem para percepções de saúde que seriam atravessadas pela sexualidade e pela espiritualidade, por noções de êxtase e de transe. Diante disso, pretende-se explorar se e de que maneiras tais experiências e percepções têm desalojado a prática médica da "biopolítica", tematizando, para tanto, suas impressões e atitudes à luz da lógica das intensidades e dos afetos, de novos modos de subjetivação e da possibilidade de outras moralidades, que não mais a da histeria e a da fragilidade dos corpos das mulheres.

Palavras-chave Parturição, Representações, Feminilidade e corporalidade

ABSTRACT

For the groups of women devotees of ways of giving birth other than cesarean section and the technocratic hospital model, the pain of labor seems to operate at another register, quite different from disorder and something to be avoided. Fully prepared to "experience the birth," they seem to eagerly embrace the contractions, the emotions and lack of control, giving expression to perceptions of health that appear to be permeated by sexuality and spirituality and by elements of ecstasy and trance. Therefore, the scope of this paper is to explore whether and in what ways these experiences and perceptions have dislodged the medical practice of "biopolitics," thereby examining their impressions and attitudes in light of the logic of the intense emotions and affection, namely of new modes of subjectivity and possibility of other moralities, other than hysteria and the fragility of women's bodies.

Key words Parturition, Representations, Femininity and corporality

Situando o leitor: quem, onde e como

Em tempos de tomografias computadorizadas, do primeiro transplante integral de rosto e de técnicas cada vez mais sofisticadas de prolongamento da vida, um conjunto de mulheres brasileiras parece "nadar contra a maré" quando a temática é a assistência médica ao parto. Entre elas, "as adeptas do parto humanizado", circula o desejo de um parto "mais natural", desprovido de intervenções médicas e farmacológicas de rotina. Essa naturalidade, propalada praticamente em todos os estados brasileiros, tem sido notadamente criticada por profissionais da saúde que a entendem como insanidade e retrocesso cultural e também por alguns cientistas sociais que a vêem como um "retorno à natureza" e, por consequência, como a reiteração de categorias de pensamento tidas como já superadas. Entre os últimos, estariam principalmente algumas feministas importantes1,2 abrindo fogo contra a questão, na medida em que entendem a questão como uma ameaça aos avanços políticos das mulheres ao reiterar a naturalidade da reprodução.

Nessa oportunidade minhas lentes recaem numa dinâmica específica, na tensão médicos x mulheres, em suas narrativas e percepções acerca do ato de parir, no que congregaria e em suas representações simbólicas. O Brasil é o recordista mundial no número de cesáreas/ano, com um índice de 84,5% da rede privada e de quase 40% na rede pública de saúde3. Esses números superam, em ambos os casos, a recomendação da OMS4, de 15% de partos cirúrgicos ao ano. Por isso, essa realidade parece ter adquirido contornos de um problema de saúde pública, quando e se notamos a existência e a persistência de campanhas governamentais, tanto na mídia impressa quanto falada, para o incentivo do "parto normal", tido como sinônimo de "parto natural" ou "parto vaginal". Esse artigo tratará da rede privada de atenção à saúde, das mulheres que dela poderiam fazer uso – mas não têm feito –, optando por outros modelos de parturição.

Procurando compreender os motivos de um parto "mais natural", em tempos de promessa de supressão da "dor do parto", de rapidez e segurança da cesárea, busquei grupos de preparo para o "parto humanizado" nos quais pudesse realizar minha observação participante e, depois, conseguir entrevistas no pré e no imediato pós-parto. Dois foram os escolhidos: um "institucional", iniciativa de um hospital escola e orientado ao público em geral, e outro que tenho denominado de "independente", sem qualquer juízo de valor, simplesmente para diferenciá-lo do primeiro grupo, dado ser uma proposta encaminhada por três mulheres de modo alheio a instituições legalmente reconhecidas. Durante dois anos, participei das reuniões semanais dos dois grupos, ambos sediados no Estado de São Paulo e, a partir delas, pude encontrar mulheres dispostas a concederem entrevistas sobre experiências gestacionais e de parturição. A pesquisa toda deve ter contado, estimativamente, com a participação de 30 mulheres, entre entrevistas detidas e conversas informais. Em razão deste trabalho possuir registro etnográfico bastante marcado, esclarece-se, de saída, que o aporte qualitativo importara-nos muito mais do que o quantitativo. Além disso, ressalta-se que a pesquisa junto ao grupo "institucional" contou com a prévia autorização do CEP (Comitê de Ética em Pesquisa) do hospital onde acontece. Não obstante, neste artigo não serão mencionados nomes, nem de informantes, nem de grupos e muito menos de instituições, haja vista o compromisso assumido entre a pesquisadora e suas fontes/informantes durante a etnografia.

Portadores de dinâmicas e de abordagens diferentes, os dois grupos buscam difundir informação sobre "outros modos de parir na contemporaneidade", por isso discutem a prática da atual obstetrícia brasileira, os exames e os procedimentos de rotina, protocolos nacionais e internacionais de assistência do nascimento; a atuação de profissionais "humanizados"; a atuação de "parteiras urbanas"; dor, contrações, trabalho de parto, cesárea, medos, inseguranças, conjugalidade e relação com a mãe da gestante, entre tantos outros pontos. Discorre-se, ainda, sobre a possibilidade do parto domiciliar. Os encontros são semanais, mas as gestantes comunicam-se também diariamente por uma lista de debate virtual. Pode-ser dizer, na realidade, que o computador é uma ferramenta importante na agregação e sociabilidade dos grupos e que, por isso, a capacidade de escrita e de acesso à internet caracteriza as mulheres que têm buscado outros modos de dar à luz. Se assim é, quem são essas mulheres que buscam outras experiências de parto?

Procurei "mapeá-las" a partir de um conjunto de marcadores analíticos5,6 (raça, classe, etnia, religião, estilo de vida, profissão e etc.), mas angustiei-me com a impossibilidade de encontrar uma franja comum. No entanto, decidi, depois, expor essa ausência de unidade entre as adeptas do parto humanizado enquanto uma qualidade, ressaltando, entretanto, a preponderância de um recorte de classe – classe média –, o acesso à internet, serem portadoras da escrita e usuárias do sistema privado de saúde. Deparei-me com umbandistas, católicas, espíritas e ateias; urbanas, adeptas de um estilo de vida mais rural; advogadas, executivas, artistas plásticas e bailarinas; vegetarianas, veganas e "comem de tudo"; alopatas e adeptas da homeopatia; mulheres "mais racionais", "mais sensíveis"; casadas legalmente, "juntadas"; mães de primeira viagem, mães de três filhos; brancas, negras, com traços indígenas e orientais; brasileiras e estrangeiras. De acordo com uma de minhas entrevistadas, esse seria um dado importante, "pois assim deixa de ser uma modinha ou coisa de um gueto, das hippies que têm dinheiro" (notas de campo, dez. 2009).

Embora conveniadas de planos de saúde e assalariadas, sugerem mais a existência de um recorte de "capital cultural" do que de classe social. Nesse sentido, seriam mais as mulheres críticas dos sistemas sociais, ou as mais "as cricas" (notas de campo, fev. 2009), do que as "ricas". Conforme a pesquisa avançava, mais eu percebia que as adeptas do parto humanizado eram as que questionam e refletem, muito antes de pertencerem a certa classe social. Nesse mesmo sentido, entendo ser preciso mencionar que, não raras vezes, entrevistei e conversei com mulheres e casais que chegaram a realizar empréstimos bancários e familiares ou que venderam o carro com o intuito de custear um parto em casa.

Se desse modo poderiam ser consideradas, a questão que vai e volta é: por que recusam a analgesia? Ou então, por que decidem ir ao encontro da "dor", sentir as ondas das contrações, a abertura de seus colos uterinos e, assim, enfrentar o "risco" do incerto, contrapondo-se ao tido como mais seguro, certo e indolor? Por que negam a aplicação rotineira do cateter para a epidural ou da ocitocina sintética para aceleração das contrações, em tempos em que tudo se resolve mediante um simples pedacinho de plástico?

Para tentar responder a essas inquietações, percebi que, antes, era preciso mergulhar em suas representações de parto e de corpo feminino. Enfim, olhar com mais afinco o que entendem por saúde/doença, à luz de suas percepções da medicina atualmente praticada e das representações sociais de corpo de mulher e de corpo grávido.

E elas, o quê pensam dos médicos e dos hospitais?

Em campo, pude constatar uma grande variedade de experiências de parto, desde o parto em casa com parteira urbana ou com médico, com ou sem nenhum procedimento e farmacologia, até um parto hospitalar tido como humanizado, ainda que com analgesia ou realização da episiotomia. Dessa maneira, tenderia a dizer que, entre as adeptas da humanização do nascimento, a cesárea e a tecnologia não parecem ser "algo de outro mundo". O ponto fulcral de suas objeções recai, por outro lado e muito mais, sobre o tratamento de rotina e padronização de um atendimento, sem que se considerem as singularidades de cada caso. De certo modo, o que querem é "o parto" e não "mais um parto".

De modo geral, criticam e procuram escapar do atendimento de rotina, a saber, tricotomia (raspagem dos pêlos pubianos); enema (lavagem intestinal); ocitocina (hormônio sintético para acelerar as contrações uterinas); analgesia (epidural); episiotomia (corte no períneo) e parto abdominal (cesárea). Há uma volição de singularidade, ainda que isso implique na eventual realização de um desses procedimentos. Parte-se da premissa de que se trata de "um corpo" e não de "mais um corpo", ou seja, de uma determinada mulher e não de mais uma parturiente. Ou seja, partem da ideia de que aquela pessoa não é só corpo, máquina reprodutora, a ser regulada por diagramas, partogramas e escalas de contrações.

Outro aspecto a ser considerado é a crítica feita ao timing médico. Essas mulheres discordam do tempo dos médicos e dos hospitais. Essa rotina ou padrão de assistência médica ao parto, nomeada de "tecnocrático-hospitalar"7,8, já viria programada, pré-ditada, controlada pelo relógio, tudo tendo um tempo limite: de trabalho de parto, para permanecer com a "bolsa rota", de intervalo das contrações e de "período expulsivo". Caso esses marcadores, geralmente presentes nos manuais obstétricos, não venham a ser respeitados, entender-se-ia que algo está errado, fora da ordem, desajeitado e, por consequência, como patologia. É esse tempo geral e estrutural que incomoda as adeptas do "parto humanizado", é o que as amedronta e as encaminha para outro tipo de relação temporal. Para algumas delas, importa muito mais o "tempo-espera" e o "tempo que acolhe" e buscá-lo torna-se, em alguns casos, uma premissa ou condição sine qua non para parirem como querem, de acordo com sua fisiologia, psique, cultura e espiritualidade.

... meu parto durou 30 horas, foi um parto psicanalítico, precisei elaborar os meus fantasmas da medicina e da minha própria capacidade de parir (notas de campo, mar. 2008).

Nesse universo, o modelo "tecnocrático-hospitalar" poderia, então, ser entendido como "excesso de cultura"9, compreendida como tecnologia e conhecimento científico e, por consequência, como o controle de um acontecimento muito mais do que fisiológico; sobretudo, psíquico, sexual, corporal, pessoal, social e cultural. Nessa esteira, há inclusive quem interprete o modelo hospitalar como equivalente à lógica fabril: o hospital seria a fábrica, a parturiente a máquina e o recém-nascido a mercadoria, a ser resguarda e avaliada em sua qualidade10.

Para pensar sobre essa lógica de atenção ao parto em nossa sociedade, a noção de "biopolítica" me tem sido bastante útil. A ideia de biopolítica teria surgido no século 19 para o controle do "corpo de múltiplas cabeças", dando novos contornos à teoria da soberania antes operante, a saber, a do "deixar viver e fazer morrer", para uma perspectiva de que ao Estado caberia o poder de "fazer viver e deixar morrer". Em outras palavras, morrer teria deixado de ser algo corriqueiro ou "natural", passando a ser algo evitado. E assim a vida teria passado a ser prolongada e, portanto, objeto de intervenção e de controle do poder, ao lado dos corpos que, sob os mecanismos disciplinares, já vinham sendo controlados para tornarem-se "dóceis e produtivos"11,12.

"Biopolítica" e "biopoder"13 teriam passado, desde então, a coexistir, atuando um no mais micro, nas instituições, e o outro num sentido mais geral, tendo na medicina e na demografia os seus mais ativos aliados. E nessa ânsia por controlar a quantidade e a qualidade da vida, os nascimentos, como era de se esperar, teriam também passado a ser foco de sua atuação. Nesse processo, a compreensão que se tinha de doença/saúde também teria sofrido alterações: a doença – tida como inevitável – teria se tornado objeto de resistência, de combate, de restabelecimento da ordem e a saúde teria se transformado em algo a ser construído diariamente. Quanto a isso, vale dizer que os hospitais, antes tidos como "morredouros" ou locais para onde eram derivados os "desviantes", passaram a se caracterizar como o local da cura, do resgate da ordem e da salvação. E nesse contexto, de "estatização do biológico" ou de valorização do "corpo-espécie", a medicina ganha espaço como a polícia da higiene pública, do cuidado e da medicalização da população.

Pensando sobre nossa atualidade, a crítica feminina à padronização da atenção hospitalar ao parto parece vir carregada dessa ideia de um corpo tratado de maneira massificada, "corpo-espécie", cerceado e constantemente ameaçado pela morte e pela doença. Um corpo a ser, por isso, monitorado em nome da saúde e do bem-estar, tendo realçado mais o seu perigo e patologia do que a crença em sua funcionalidade e capacidade de reação, como bem pontua uma das adeptas do parto humanizado que conhecemos: "nossa medicina é assim, vibra na doença." (notas de campo, mar.2008)

Dor: um mosaico de percepções

Se essas práticas femininas contemporâneas são, por um lado, críticas, e, de outro, propositivas, ambas as frentes têm me posto diante de representações dissonantes daquilo que compõe uma cena de parto. Um desses conjuntos de percepções dissonantes é o da tão famosa "dor do trabalho de parto". Para um médico, recentemente entrevistado, tratar-se-ia da "pior dor do mundo, equivalente somente a cólica renal e, ainda assim, multiplicada por 1000"14. De fato, a ideia de que parir dói não é algo circunscrito somente à categoria médica, é algo veiculado também pelas próprias mulheres – mães, avós e tias de parturientes. Existe quase um consenso social de que dar à luz dói e que pode ser perigoso para a díade parturiente/recém-nascido; vigorando, ainda ou conjuntamente, ideias como as de que a mulher perderá a integridade de seu assoalho pélvico, de que passará a ter problemas para relacionar-se sexualmente e de que o sentido durante as contrações figura algo realmente insuportável. Esse, ao menos, tem sido o discurso que grande parcela da categoria médica tem propalado com a intenção de oferecer às gestantes a opção por uma cesárea, rápida, segura e indolor.

Em campo, pude constatar que "o medo da dor", de fato, existe. Nos encontros e conversas informais com médicos e parteiras urbanas ou mesmo entre as próprias gestantes, recorrentemente, pude perceber a apreensão quanto ao que se sentiria durante o trabalho de parto. Fala-se muito sobre o "medo da dor", sustenta-se que a "dor é subjetiva", "que cada uma tem um limite próprio" e que algumas técnicas corporais podem ser úteis para o suavizo dessas sensações durante o trabalho de parto. No pré-parto, momento dos encontros e da preparação da gestante e do casal, a dor opera como um fantasma, principalmente para as primigestas. Entretanto, mesmo temida, porque ainda desconhecida, figura como sensação corpórea a ser enfrentada e suportada em nome de algo maior: a experiência de parir e sentir tudo o que nela se vê envolvido. E na realidade parece pesar mais esse desejo de "sentir" o trabalho de parto, do que o próprio medo da dor, existindo, assim, certo "apresentar-se à dor", "dar a ela passagem" ou, ainda, "a ela entregar-se" (notas de campo, 2008-2010).

Nesses momentos, uma das metáforas mais usadas é a da "escalada da montanha". O parto é assim pensado, é preciso subir, esforçar-se para chegar ao topo e apreciar a vista. "Subir de helicóptero também leva ao topo, mas perde-se a experiência, o caminho e a passagem" (notas de campo, idem). O helicóptero seria, então, a analgesia ou a cesárea e, consequentemente, a perda do caminho seria a perda das sensações do trabalho de parto. "Escalar a montanha" aparece similarmente como a importância de "manter o ritmo", que, no parto, seria o da respiração, do desejo de fazer força e o do cansaço diante de horas e horas de trabalho.

Se pude constatar essas situações no pré-parto, no pós-parto, em entrevistas e em outras ocasiões, a questão adquiriu outros contornos, pois já tinham vivido "a dor por si mesmas" e estariam aptas para descrever o experimentado de maneira individualizada. Percebi, então, que o que se entende por dor não pode ser tingido tão a preto e branco e que precisa ser nuançado, pois figura muito mais um mosaico de percepções, de significados e de perspectivas, do que algo uniforme e pacífico. Das muitas concepções veiculadas, depreendi quatro categorias, por mim consideradas as mais importantes. Não se trata de uma tipologia fechada, mas mais de uma amostra dos desenhos simbólicos que podem ser construídos a partir do que se sente. Os tipos de interpretação seriam: "a dor que dói", "a dor que se esquece", "a dor que não é sofrimento" e, por fim, a "não senti dor, foi prazeroso".

Em razão de a primeira coincidir com a percepção médica, não será aqui abordada com afinco, a não ser no sentido de que repete e reatualiza – convencionalizando – que parir dói e que pode ser sofrido, muito embora, ainda assim, tenham decidido vivenciá-la, na contramão do propalado pelos profissionais, manuais e imaginário ocidental, de que se trata de algo a ser evitado ou controlado de antemão. Entretanto, quanto às outras perspectivas, entendo ser interessante uma breve, porém maior problematização, dado seu caráter dissonante quando e se comparado aos discursos mais gerais do que acomete as mulheres no momento do parto.

A segunda modalidade, "a dor que se sente, mas se esquece", aparece embebida por um apagamento do que se sentiu, uma espécie de sublimação. Tem-se a ideia de que doeu, mas de que o experimentado teria passado a ser irrelevante ou porque a mulher conseguiu parir "naturalmente" como desejado, ou porque a satisfação de ter a criatura nos braços superara o sentido. Para esse grupo, a dor opera como componente de um "ritual de passagem", sentindo a dor, como uma ritualística, a mulher torna-se mãe, dando espaço para a construção de outra subjetividade: a materna. Ela é igualmente importante para o estabelecimento de laços afetivos com o recém-nascido, para que a experiência dê sentido e contornos ao ato de maternar. Dessa maneira, é entendida como uma travessia de estágios subjetivos e de status sociais, importando mais o depois, aquilo que vem, do que a dor em si mesma. É preciso ressaltar que inúmeras das mulheres entrevistadas partilharam da ideia do ritual de passagem, tendo uma delas inclusive ponderado que: é muito importante passar pelo trabalho de parto, pois na minha cesárea, quando acordei, tinha uma criança nos braços e não estava preparada, a ficha não tinha caído. Foi muito ruim, acordar e ser mãe, mas não saber como tinha acontecido (notas de campo, mar.2008)

Nesse sentido, a dor perderia sua centralidade ou autorreflexividade, importando mais o resultado final, ainda que seja entendida, como algo importante e uma espécie de caminho a ser percorrido para, nos dizeres das informantes, "se alcançar o Everest" (notas de campo, abr. 2008). De outro prisma, a dor seria, aqui, em algum sentido, naturalizada, vista como algo esperado, porém nada marcador de uma vivência ruim e, por isso, a ser evitado. Entre esse grupo, que representaria quase um quarto das analisadas, mesmo existindo, a dor deixa de ser algo importante em si mesma, em que pese poder ser lida no registro do sacrifício que as mulheres teriam de suportar para ter o parto desejado. Essa dor funciona como um tipo de requisito "para se viver o que se quer" (notas de campo, abr. 2010) ao invés de anestesiada e ausente do que se passa em seu próprio corpo. De acordo com uma das mulheres analisadas, para vivermos o parto é preciso ir além da dor, ultrapassá-la, como já dizia Fernando Pessoa no poema sobre o bojador (notas de abr. 2010).

No terceiro grupo, de aproximadamente um terço do universo estudado, aparece a "dor que não é sofrimento", a que destoa da noção de que a mulher sofre ao dar à luz. Resulta assim, como algo que é dito pelo seu negativo. É o que não é algo, na falta ou ausência de palavras que possam nomear o vivenciado; funcionando, desse modo, como a intermediária, como aquela que estaria entre a "dor que dói" e "a que se esquece". Dela, as mulheres parecem se lembrar, muito embora não a signifiquem na leitura do padecimento e da insuportabilidade. Essa ausência de palavras que pudesse significá-la, poderia, por nós, ser interpretada como o vazio que, por assim apresentar-se, já destoaria de narrativas normativas e nomeadoras. Talvez, um vazio criativo, que carrega a positividade por meio de sua própria negatividade ou negação – é o que não é sofrimento, não sendo, portanto, o que é dito socialmente e pela medicina tradicional. Nesse sentido, dita diferentemente, em outro sentido, ainda que não se saiba qual exatamente, termina fugidia e proferida por lábios femininos e, no mínimo, poderia indicar que ser mãe e parir nem sempre é "padecer no paraíso", abrindo brechas para outras conotações.

Por fim, o último grupo, ainda restrito, uma minoria, pouco menos de um quarto, talvez em razão dos próprios tabus em que se encontra inserido, é o grupo da "não dor e do prazer". São aquelas mulheres que dizem ter sentido prazer e satisfação durante o trabalho de parto – decidi empregar satisfação e prazer, pois essas categorias despontaram na pesquisa de campo. Esse conjunto narra não ter sentido dor e opera muito mais a narrativa da satisfação física e do bem-estar. Essa sensação é descrita tanto no imediato pós-parto quanto no decorrer das contrações uterinas, sendo descritas como ondas que vêm e vão, ondas de calor, de sensações à flor da pele e de sexualidade. No pós-parto, essas sensações vêem aliadas, ainda, a um sentimento de poder, em virtude de terem vivido o almejado e de terem conseguido parir, ainda que muitos tenham entendido suas práticas e desejos como um grande desatino ou delas duvidado. Essa satisfação parece ser de tal ordem que, para muitas, parir "mais naturalmente", teria representado "um divisor de águas" (notas de campo, jun. set. nov. 2009), passando, a partir dali, a sentirem-se preparadas, "como nunca" (notas, idem), para qualquer outro fato de suas vidas. E então "poderosa" passa a ser a palavra mais repetida entre elas e em nossas entrevistas.

Há, mais recentemente, toda uma discussão nos grupos de preparo para o parto humanizado sobre o denominado "parto orgástico". Depois de um documentário feito nos EUA, no qual um grupo de mulheres dá depoimentos de terem sentido prazer sexual e orgasmo durante o parto, o assunto ou tornara-se modismo ou passara a vir à tona em função de alguém ter dado vazão a esse tipo de narrativa. No grupo, acredita-se que poucas são as mulheres que conseguem sentir orgasmo ao parir, porém compartilha-se da possibilidade de sua ocorrência e externaliza-se o desejo de poder conquistá-lo. Fala-se bastante, no entanto, isso sim, de sensações prazerosas no momento da "roda de fogo", quando a criança dá início à passagem pelo canal de parto, roçando na região perineal (notas de campo, mar.2010). Outras, então, mencionam prazer enquanto se dão as contrações uterinas. E um grupo, este sim bastante grande, partilha da ideia de que trocar carícias, beijos, ter os seios acariciados, abraçar o companheiro durante o desenvolvimento do parto, além de auxiliar notadamente todo o trabalho corporal, "é muito gostoso e muito bom" (notas de campo, idem).

Entre sensações satisfatórias, prazer, excitação e orgasmo, certamente, existe uma gradação. Entretanto, em momentos diferenciados, têm aparecido nas narrativas de parto de algumas das mulheres do grupo "independente". E, nesse ponto, o prazer é corporal, tem o corpo como ponte, é feminino, autoerótico, acontece no corpo da mulher e antes da relação maternal com a criatura, muito embora aflore desse contato corpo a corpo e de dois. E não se vê ligado, única e exclusivamente, ao nascimento da criança enquanto fato ou acontecimento esperado e idealizado. Parece existir à flor da pele, talvez explicando o que elas têm denominado de "intensidade" e eu de "afetação". Não obstante, viver esse tipo de experiência requer, segundo minhas informantes, uma maior liberdade com o próprio corpo e sexualidade e um afrouxar dos laços que conectariam as mulheres a uma "moral civilizada", que prescreve a mãe assexuada e abnegada.

Percepções da partolândia: Eles silenciam... Elas contam

Existe, entre as mulheres adeptas do parto humanizado, uma expressão que procura significar alguns ou "aquele" momento do trabalho de parto, refiro-me, aqui, a tão, por elas repetida, "partolândia". Em relatos públicos, escritos, listas de discussão e em entrevistas, a "partolândia" vem para significar um estado alterado de consciência, um flash, instante ou poucos minutos em que se perderia a razão, figurando, por isso, um "vazio no qual não se pensa, somente se sente", uma "ocasião em que se está em outro lugar e não mais ali, sem saber quem está por perto ou que se está fazendo", "uma zona de pensamento em branco" (notas de campo, 2008-2010).

Para um médico francês15 precursor da prática do "parto sem dor", tratar-se-ia de um momento de interrupção do neócortex, no qual a mulher remontaria ao seu estágio mais arcaico, "mais animal, mais mamífero" (notas de campo, jul.2010). Essa explicação vem bastante pautada na ciência, fisiologia e numa conjuntura hormonal própria do parto; na qual muita ocitocina e serotonina seriam liberadas – se e desde que a mulher não se sentisse ameaçada e passasse a produzir o "hormônio do medo", a adrenalina. Dessa forma, uma vez imersa, conforme suas palavras, nos "hormônios do amor", o "superego" cessaria e a parturiente poderia chegar a assumir posições e atitudes "pouco afeitas à moral civilizada", como gritar, gemer, chorar, gargalhar, saltar e etc., tendo lampejos de inconsciência. Poderia, dessa maneira, parir sem sentir dor, de modo tranquilo e saudável. Em sua leitura, portanto, desde que a mulher esteja isolada, na penumbra, cômoda e à vontade, haveria espaço para esse momento, em que a racionalidade deixa de existir e em que parir pode tornar-se algo indolor e inclusive prazeroso, estando tudo relacionado a razões tecnicamente investigadas. Esse é, vale dizer, um dos poucos médicos que escrevem ou declaram essa possibilidade, pois, pelo que parece, a grande maioria perceberia nessas reações um grande descontrole emocional e desordem.

De outro lado, estão elas – as mulheres do parto humanizado – tentando significar a experiência da parturição, suas sensações e emoções. Se o médico acima referido remete-nos às teorias científicas, a perspectiva feminina nos conduz à "partolândia" e, por consequência, às interfaces entre parto, espiritualidade e sexualidade. Para as adeptas do parto humanizado, este poderia ser traduzido como uma experiência de transe e de êxtase, espiritual e sexual, separada, conjunta ou atravessadamente. Por isso, entender suas percepções nesse sentido, diferente e divergente, tem sido um dos focos de meu trabalho.

A espiritualidade de que falam tem o corpo como ponte, é vivida através de corpos latejantes e pulsantes, quase descontrolados, e que, por fim, instalam a transcendência em lugares muitas vezes antes pertencentes à dor do trabalho de parto. Por conta disso, em que pese não termos encontrado um denominador comum quanto à crença das entrevistadas, posto que marcadamente plural a filiação religiosa, tendemos a considerar a existência de uma noção de espiritualidade que seria própria do momento do parto, muito mais relacionada à ideia de transe, de conexão com o desconhecido e de irracionalidade, do que com alguma divindade em especial. Essa espiritualidade do parto parece, de certa maneira, embaralhar fronteiras tradicionais entre sagrado x profano e entre puro x impuro, na medida em que o sagrado da "partolândia" vem ancorado na sexualidade, que muitas vezes fora e pôde ser considerada impura, suja ou contaminante. De acordo com alguns dos relatos, é o corpo da mulher que grita e geme, tocado, acariciado e que está nu, que dá passagem para lapsos de transe que são interpretados como sagrado e lidos no registro da transcendência. É, dessa maneira, o corpo da mãe, que aqui escapa do imaginário da mãe assexuada, abnegada, casta e pura.

Eu queria ficar na minha, mas ela me chamava [a parteira urbana], me mandava para lá e para cá. Queria que eu estivesse presente, mas eu estava em outro lugar (abr.2009).

... parecia que eu estava num sonho. Ficamos assim, meio sem raciocinar, não vi ninguém (mar.2010).

... eu estava ligadona. Eu estava meio em transe (mar.2008).

... eu me entregava para a dor, entrava em transe, visualizava o rosto do meu filho e um pé de jabuticaba. E, com tudo isso, cantava músicas de natal (nov.2009).

De outro lado, porém, às vezes, a um só tempo, surge a "partolândia" que é êxtase e satisfação física e a perspectiva de que o parto pode ser um evento sexual para além da reprodução; que pode gerar prazer e comportar aspectos, inclusive, de erotismo. Estaríamos aqui, uma vez mais, no complexo campo da sexualidade, bem como no de suas múltiplas expressões, deparando-nos com narrativas de sensações corpóreas, psíquicas e emocionais, que dão à "partolândia", esse estado alterado de consciência, um redirecionamento sensorial. Em outras palavras, o sexual poderia, nesses registros, ser pensado através do autoerotismo, de uma capacidade própria da mulher, que ao parir pode também sentir prazer, a partir da singularidade de seu corpo e de sua fisiologia gravídica.

... eu senti prazer na roda de fogo, foi uma sensação gostosa (dez.2009).

... senti dois orgasmos retumbantes na fase final de meu parto (Documentário Orgasmic Birth, 2009)16.

... o orgasmo pode vir de outras maneiras, nem todas chegam ao orgasmo, a mulher precisa ser muito resolvida. Mas podemos pensá-lo como a satisfação, o prazer e a sensação de poder logo que o parto acontece (mar.2010).

Isto posto, a sexualidade, por elas apresentada, não parece restringir-se somente à reprodução, à chegada de outra criatura, ou à sua fisiologia e corpo, passa, antes e sobretudo, pela estimulação e satisfação do corpo daquela que está parindo, acarretando-lhe bem-estar, prazer e gozo. É evidente que um ponto dialoga com o outro, a satisfação física também advém do nascimento de uma criança, porém, vale ressaltar, comporta igualmente e simultaneamente uma dimensão pessoal de prazer, da mulher com seu corpo grávido e em trabalho de parto.

Saúde e bem-estar para além do corpo: Doença como controle, tecnologia abusiva e ausência de autoria

Dado que a proposta deste artigo é refletir sobre concepções de saúde/doença dissidentes na contemporaneidade, pretendo neste tópico levantar questões a partir do até aqui desenvolvido.

Diante do material de campo, o que parece incomodar as adeptas do parto humanizado seria o excesso de controle médico e tecnológico no momento do parto, a padronização dos procedimentos e sua invasividade. Somado a isso, viria também a distância emocional dos profissionais, que pouco se envolveriam com o estado em que se encontram as mulheres no momento do parto. Pudemos constatar também que o parto, para esses grupos de mulheres adeptas do parto humanizado, é muito mais do que um ato fisiológico, sendo, na realidade, uma experiência única, pessoal, sexual, espiritual, social e cultural, ou seja, muito mais do que corpos, programas e manuais médicos.

Partindo dessas hipóteses poderíamos depreender que a doença, entre elas, vem a reboque do controle, da disciplina, "do procurar excessivo", dos toques subsequentes, de uma atitude compulsiva em busca do que está errado, do "que vai mal" e está fora de lugar, ainda que aquele corpo sinta bem-estar. Dessa forma, o incômodo relatado em campo tende a advir do "excesso de cultura". Essas ilações, em última instância, nos permitem pensar que, para essas mulheres, a doença e o disfuncional não coincidiriam com a noção de doença da "biopolítica", ou seja, daquilo que constantemente ameaça, do que sempre parece estar à espreita e que precisaria, cotidianamente, ser controlado. Nesse universo, bem ao contrário, é a doença que é a exceção.

Se a doença vem assim caracterizada, a saúde e o bem-estar teriam seus contornos alargados, congregando a necessidade de uma visão para além do corpo físico, que levasse em consideração a própria trajetória daquela que gesta e está parindo, somada a aspectos, uma vez mais, da ordem do espírito e do sexual, linhas caracterizadoras da "partolândia"; um estado considerado satisfatório. Poderíamos pensar aqui, na falta de um termo mais original, numa noção de saúde sistêmica. Ou em uma saúde atravessada e composta também pelas emoções, sentimentos e sensações, na qual a dor, ocidentalmente construída, encontraria, como também já pudemos tematizar, outras possibilidades de inscrição.

Essas percepções de saúde e de bem-estar teriam, por tudo isso, uma relação diferente com o risco e com o medo, pois subvertem a lógica ou a relação de causa-consequência entre um e outro até operantes quando o assunto é a parturição. Digo dessa maneira porque, para parir de modo saudável, as mulheres do "parto humanizado", mesmo sentindo medo e temendo o risco, ao invés de protegerem-se, resguardando-se do que, por ventura, pode ocorrer, apostam e dispõem-se a ambos, colocam-se perante o desconhecido, "com o que não se sabe onde vai dar", ainda que isso não implique num rechaço integral da tecnologia e do conhecimento médico, posto que, exageros à parte, quase todas procuram, minimamente, refletir sobre modelos, métodos, locais e profissionais de parto.

Para parir com saúde e bem-estar, a premissa parece ser, então, a predisposição à superação do risco, como se enfrentá-lo acabasse por enriquecer a experiência, dando passagem para a sua singularidade. Desse modo, o risco atua como uma espécie de requisito para um parto melhor e mais saudável. Dito de outro modo, corre-se o risco de não seguir as recomendações médicas, de parir em casa, sem anestesia ou no hospital e sem ocitocina, ainda que a medicina diga o contrário, com o objetivo de, primeiro, ter o parto que se quer, "mais natural", entendido como saudável.

Dessa maneira, o medo existe, lado a lado com o risco, porém, não no mesmo sentido, está ali para ser superado, negado e desconsiderado, para que essas mulheres possam, segundo uma das informantes, "deixar de vibrar na doença" (notas de campo, 2009). Tudo indica a existência de uma percepção de saúde que é a regra, de que "tudo está bem e que vai dar certo", no sentido contrário da vigilância moderna e contemporânea da "biopolítica", que pensava em saúde como algo a ser construído, modelado e resguardado e na doença como padrão, a norma e a regra, a ser, por isso, sempre monitorada e observada por e com todos os olhos possíveis desde o clínico até o microscópio.

Essas parecem ser as construções das adeptas de outros modos de parir, que, mesmo podendo ter uma cesárea rápida, têm optado por experiências "mais cruas e mais selvagens" (notas de campo, 2008-2010), pelo enfrentamento do desconhecido, do medo e do risco, oferecendo-nos, em seguida, outras noções de dor de parto. De minha parte, tendo a entender essas práticas enquanto volição de singularidade e desejos de afetação, que, posteriormente, aparecem interpretadas em leituras espirituais e/ou sexuais a partir da expressão "partolândia".

E agora, mas de que corpo se trata? Processos de subjetivação e moralidades

Discorremos sobre um corpo que, para essas mulheres, é mais que biológico, é psíquico e emocional e, nesse percurso chegamos a nomeá-lo de "corpo que é ponte", tentando traduzir o que foi encontrado durante a etnografia. Por essa razão, parece-me restar ainda um último ponto a ser abordado neste artigo: a conexão entre esse corpo, os processos de subjetivação e a tessitura de outras moralidades.

Para tanto, tomarei de saída a representação histórica e ocidental do corpo das mulheres, percebido e ditado de modo calcado em características como: incompletude, fragilidade, histeria e descontrole, entre tantas outras que discursivamente atuaram no sentido de excluir o sexo feminino do mundo público. Furor uterino, sexo masculino invertido e interno, úteros que caminham pelos corpos, ausência de calor, passividade, inatividade e loucura foram algumas das palavras proferidas por aqueles que tentaram explicitar a natureza psíquica e sexual feminina. Para tanto, a ciência, a anatomia, a fisiologia e, até mesmo, a ginecologia e a obstetrícia modernas parecem ter tido um papel fundamental, pois, de suas linhas e tintas, o corpo grávido e o momento do parto também fizeram parte, tanto que o parto, a partir do século 19, passara a ser assunto médico, deixando de pertencer ao universo dos cuidados e dos saberes femininos por demais tradicionais. Graças a essas construções teóricas, desenvolvemos uma representação de mulher inferiorizada, menor e desigual. É certo que muito já se avançou, tanto por parte das ciências sociais, quanto da saúde e das reivindicações feministas, ao ponto de teorias como essas praticamente terem caído por terra. No entanto, quanto ao parto em especial, pouco pudemos identificar de avanço, ao menos até a atual conjuntura social brasileira, na qual ainda parece ser assunto médico e cercado de um imaginário ainda moderno.

Se assim é e em outro sentido têm se posicionado as adeptas do "parto humanizado", quais seriam as consequências de suas narrativas no que tange aos processos de subjetivação feminina na contemporaneidade? Ou então, quanto às moralidades dos corpos, como poderíamos pensar, a partir disso, na representação do corpo grávido, existiriam outras moralidades sexuais?

Entre as adeptas do parto humanizado, existe um manejo de técnicas de cuidado de si, um mínimo esboço do que entendem ser correto e incorreto, uma relação diferente com o risco e com o medo, com as hierarquias entre médicos e pacientes, aspectos estes que parecem indicar outro imaginário de corpo e de subjetividade feminina, dissonante do ditado por discursos de controle anteriores, tanto por parte da Igreja, quanto da Medicina ou do Direito, todos pensados a partir do ocidente. Pelo que parece, elas tentam estabelecer outro diálogo com a figura materna, moldando essa subjetividade não mais como a da "mãezinha", que necessariamente sofre e "padece no paraíso", a partir do corpo frágil e perigoso, ou seja, a vítima de sua própria anatomia; bem ao contrário, esses grupos de mulheres parecem buscar conferir outra tonalidade a essa subjetividade, a saber, mais processual.

É certo, que, para alguns teóricos, o movimento ao redor do parto humanizado viria somente reforçar ou reiterar mitos anteriores, como o de que a mulher está para a natureza e o homem para a cultura e o do amor materno. Não obstante, em nosso entender, essas outras práticas de parto carregariam, junto dessa possibilidade, também sinais da existência de outros processos de subjetivação e de outras moralidades de corpo feminino, leituras de outras corporalidades, tanto por parte das gestantes, parturientes e "já paridas", quanto por parte de seus companheiros e, por último, de alguns dos profissionais de saúde adeptos do ideário do parto humanizado. Essa seria uma outra grade de percepção de corpo e de sexualidade das mulheres, ainda tímida, mas já presente nesse início de século 21...

Artigo apresentado em 10/04/2012

Aprovado em 20/08/2012

Versão final apresentada em 11/09/2012

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    Documentário Orgasmic Birth [DVD]. USA: Debra-Pascali; 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Ago 2013

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2012
  • Aceito
    20 Ago 2012
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